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Perspective

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Navegando nas (ainda) despercebidas águas do Cerrado, a savana brasileira

Lar das cabeceiras e da maior parte das bacias hidrográficas da América do Sul e das bacias a montante de grandes afluentes do Amazonas, o bioma Cerrado desempenha um papel vital na disponibilidade de água superficial e subterrânea do Brasil.

O agronegócio se expande às custas da biodiversidade do Cerrado.

Esforços de conservação relacionados à água, como o Programa Produtor de Água, estão em andamento para alinhar a manutenção dos serviços ecossistêmicos com práticas agrícolas sustentáveis.

Cláudia Coleoni, Tomás Carvalho / Published on 22 November 2021

O bioma desconhecido

Berço das águas brasileiras, o bioma Cerrado muitas vezes passa despercebido quando falamos em preservação ambiental no Brasil. Localizado no planalto central do Brasil, o Cerrado é a maior savana tropical fora da África, ocupando 24% do território nacional, perdendo apenas para o bioma amazônico. Cobrindo uma área de aproximadamente dois milhões de km², o Cerrado faz fronteira com quase todos os biomas brasileiros, desempenhando um papel fundamental na manutenção da biodiversidade e na prestação de serviços ecossistêmicos, como abastecimento de água, qualidade do solo e fornecimento de alimentos. O bioma também presta serviços ecossistêmicos essenciais e de apoio a mais de 80 etnias indígenas, como os Karajá e os Xavante, e também a povos tradicionais, como quilombolas (afrodescendentes), ribeirinhos e quebradeiras de coco babaçu.

Lar das cabeceiras e da maior parte das bacias hidrográficas da América do Sul e das bacias a montante de grandes afluentes do Amazonas, o bioma Cerrado desempenha um papel vital na disponibilidade de água superficial e subterrânea do Brasil.

O bioma Cerrado é estratégico para a gestão dos recursos hídricos no Brasil. Abriga as cabeceiras e a maior parte das bacias hidrográficas da América do Sul (as bacias dos rios Paraná-Paraguai, Araguaia-Tocantins e São Francisco), bem como as bacias a montante de grandes afluentes do Amazonas, como o Xingu e o Tapajós. É um dos principais contribuintes para o abastecimento de água dos rios São Francisco, Amazonas e Araguaia, representando 14% de todas as águas superficiais brasileiras. O Cerrado também desempenha um papel essencial nas reservas subterrâneas do país; três dos principais aquíferos do Brasil – Bambuí, Urucuia e Guarani – fluem pelo território do bioma. Considerando as credenciais do Cerrado em todo o país e de ser rico em água, fica claro que a falta de conservação ambiental do bioma está colocando em risco o abastecimento de água de todo o país.

O agronegócio se expande às custas da biodiversidade do Cerrado, levando a taxas de desmatamento cada vez maiores que favorecem uma narrativa de "escassez de água", apesar do potencial de "abundância de água" do bioma.

   Apesar do potencial de “abundância de água” do bioma, a narrativa de “escassez de água” prevalece com a fragmentação do Cerrado e a conversão de terras para a produção agrícola. A região do Distrito Federal (onde está localizada a capital, Brasília) experimentou longos períodos de redução de chuvas entre 2017-2019, afetando o abastecimento de água urbano e rural. A população do Distrito Federal foi forçada a viver com esquemas de “racionamento de água rotativo”, enquanto testemunhava a redução contínua do nível do lençol freático devido à retirada excessiva de água subterrânea. O problema da escassez de água está longe de terminar: em junho de 2021, vários rios que compõem a bacia do Paraná experimentaram os menores níveis de vazão já registrados, gerando temores de um apagão no sistema elétrico brasileiro. Pesquisadores já alertaram sobre a relação entre o desmatamento no Cerrado e a crise hídrica no Centro-Sul do Brasil. Essa crise hídrica regional recorrente é uma combinação de vários fatores, como condições naturais, uso da terra e decisões de gestão da água, mas a proteção das nascentes do Cerrado certamente minimizaria e potencialmente reverteria o cenário de escassez de água no Brasil.

   Este é apenas um lado da história e aparentemente o menos conhecido, ou talvez o mais negligenciado pelos formuladores de políticas e importadores e exportadores de commodities agrícolas. O Cerrado não passa despercebido quando falamos do agronegócio brasileiro. Muitas vezes chega às manchetes nacionais e contribui significativamente para o PIB do país. Mas a que custo socioambiental?

Figure 1 – The Cerrado biome and its multiple facets.

Figura 1 – O bioma Cerrado e suas múltiplas facetas. A) Aqui, representamos o Cerrado conectando biomas em todo o Brasil. Com uma área de aproximadamente dois milhões de km² (equivalente à área total combinada da Áustria, França, Alemanha, Espanha e Suécia), o Cerrado faz fronteira com quase todos os biomas brasileiros. B) O Cerrado também é conhecido como o berço das águas brasileiras, onde ficam as cabeceiras e a maior parte das bacias hidrográficas da América do Sul e as bacias hidrográficas a montante de grandes afluentes do Amazonas. C) Aqui, ampliamos as áreas de agricultura intensiva do Brasil (quadrado tracejado indicado no Mapa B), retratando o Cerrado como o celeiro do Brasil com sua produção de soja e comparando-o com a vasta rede de água. Fonte: elaboração própria com base em conjuntos de dados nacionais disponíveis ao público.

A dualidade do Cerrado: o malabarismo entre o comércio de commodities agrícolas e a preservação do meio ambiente

Figure 2 - Land degradation contrasting with a preserved area in the Cerrado biome.

Figura 2 – Degradação do solo contrastando com área preservada no bioma Cerrado. Créditos das fotos: Guia Turístico de Goiás (2020)

O bioma Cerrado é bem conhecido dos produtores de commodities agrícolas do Brasil e das empresas de comércio internacional. Dada a sua produção em grande escala de carne bovina, milho, algodão, polpa de madeira, cana-de-açúcar e soja, a região representa 60% de toda a produção agrícola do Brasil. Há um ditado popular entre agrônomos e legisladores que “o Brasil é o celeiro do mundo” e os números da produção agrícola atestam isso. Mas quando os principais parceiros comerciais de produtos agrícolas do Brasil, o governo da China e a União Europeia, importam soja brasileira, o que eles estão realmente comprando?

Em 2016, a soja brasileira exportou 275 gigametros cúbicos de água virtual bruta e 17 milhões de hectares de terra virtual bruta. De acordo com a iniciativa Trase, somente em 2018 a soja brasileira estava associada a 49.983 hectares de risco de desmatamento, representando 8,3 milhões de toneladas de CO2 (para mais detalhes consulte o método Trase). A região do MATOPIBA foi responsável por 88% do risco de desmatamento da soja exportada no bioma Cerrado. Situado na interseção de quatro estados brasileiros (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), o MATOPIBA é a nova fronteira da produção de soja, que está se expandindo rapidamente às custas da biodiversidade do Cerrado.

Embora 8,4% da área do Cerrado seja protegida por Unidades de Conservação (equivalente a 167.536 hectares), há um claro desequilíbrio entre os investimentos (se houver) em conservação ecológica e expansão do agronegócio. Em 2018, o governo brasileiro destinou mais de 34 bilhões de dólares para financiar o setor do agronegócio. Em forte contraste, o orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 2018 foi de cerca de 664 milhões de dólares, dos quais cerca de 47 milhões de dólares foram destinados às Políticas Nacionais de Recursos Hídricos. Por que não promover um setor do agronegócio comprometido com a preservação do meio ambiente? Por quanto tempo o “desenvolvimento” estará em conflito com a “sustentabilidade”?

Agora temos os dois lados da história: a priorização da intensificação da produção agrícola e o descaso sistêmico da conservação ecológica do bioma Cerrado. Mas nem tudo está dito e feito; muitas iniciativas em andamento visam minimizar essa lacuna.

Figure 3 – Soybean trading flows for the Cerrado biome (2018).

Figura 3 – Fluxos de comercialização da soja para o bioma Cerrado (2018). Do volume total produzido (47.068.072 toneladas), 23.807.969 toneladas (50,6%) foram destinadas à China continental e 4.835.184 toneladas (10,3%) à União Europeia, principal parceiro comercial dos produtos agrícolas do Brasil. Fonte: Adaptado da iniciativa Trase.

Da escassez à abundância de água

Dados publicados recentemente da iniciativa MapBiomas mostram que o bioma Cerrado perdeu 1,8 milhões de hectares de superfície de água entre 1985-2020. No entanto, esforços de conservação relacionados à água estão em andamento para cumprir o potencial ainda inexplorado de abundância de água do bioma Cerrado. O Programa Produtor de Água (PPA), criado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) no início dos anos 2000, é um exemplo que poderia reverter progressivamente o atual cenário de escassez de água se implementado de forma adequada. O PPA é um esquema de pagamento por serviços ambientais (PSA), com base no “princípio do provedor-recebedor”. O raciocínio subjacente é que os beneficiários dos serviços ecossistêmicos relacionados à água devem compensar os administradores que mantêm ou protegem os serviços ecossistêmicos dos quais se beneficiam.

Esforços de conservação relacionados à água, como o Programa Produtor de Água, estão em andamento para alinhar a manutenção dos serviços ecossistêmicos com práticas agrícolas sustentáveis ​​no bioma Cerrado.

Plataformas colaborativas multissetoriais envolvendo empresas, governo e sociedade civil estão demonstrando que é possível se associar ao PPA para alinhar as melhores práticas agrícolas com o objetivo de melhorar a conservação da água. O Consórcio Cerrado das Águas, no estado de Minas Gerais, é um deles, reunindo restauração da paisagem, gestão de recursos hídricos e práticas agrícolas inteligentes com o objetivo de construir paisagens produtivas de café sustentáveis ​​e resilientes ao clima. Essa região, conhecida como Cerrado Mineiro, é responsável pela produção de 360 ​​milhões de toneladas de café, quase 13% da produção brasileira, e abrange 55 municípios e mais de 4.500 produtores rurais.

Figure 4 – The waters of the Pipiripau river.

Figura 4 – As águas do rio Pipiripau. Localizada no bioma Cerrado, o Pipiripau também abriga um dos principais projetos do Programa Produtor de Água da ANA. Source Atualmente, o rio Pipiripau abastece 180 mil habitantes do Distrito Federal. Créditos das fotos: Raylton Alves / Banco de Imagens da ANA.

Aproveitando o potencial do Cerrado: o caminho a seguir

O bioma Cerrado muitas vezes passa despercebido quando falamos em água e conservação ambiental no Brasil e no exterior. Embora as estratégias de conservação relacionadas à água estejam em andamento, elas certamente não se expandem na mesma proporção que as atividades “business as usual” do setor de agronegócio, particularmente na fronteira agrícola da região do MATOPIBA. As taxas de desmatamento cada vez maiores e as exportações de água virtual enfraquecem o papel crucial do Cerrado no desenvolvimento sustentável do Brasil.

Para evitar a escassez do abastecimento nacional de energia elétrica, o colapso do abastecimento continental de água e até mesmo a ruptura das cadeias globais de abastecimento agrícola, a dualidade do Cerrado requer uma mudança sistêmica urgente. Acreditamos que existe uma oportunidade escondida de transformar o bioma Cerrado em uma paisagem produtiva sustentável que pode alavancar seu potencial no fornecimento de serviços ecossistêmicos, bem como fornecer uma fonte de renda para povos tradicionais e indígenas. Mudar de “escassez de água” para “abundância de água” requer uma nova narrativa para o bioma Cerrado, uma que veja o valor de longo prazo da conservação ambiental.

Esse artigo foi primeiramente publicado na Water Science Policy e também está disponível em Inglês, Italiano e Espanho.

Coleoni, C., & Carvalho, T. (2021) ‘Navigating the (yet) unseen waters of Cerrado, the Brazilian savanna’ Water Science Policy2(51). doi: https://dx.doi.org/10.53014/CZLS6439

Escrito por

Cláudia Coleoni

Research Associate

SEI Latin America

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